segunda-feira, 19 de maio de 2014

Relato de Lídia Maria de Melo sobre a ditadura


Meu nome é Lídia Maria de Melo. Em março de 1964, quando ocorreu o golpe militar, eu tinha 6 anos de idade. Minha família foi atingida diretamente por esse fato político e histórico que desencadeou uma ditadura militar com duração de 21 anos. Assim, tornei-me  uma criança que viveu, percebeu e sentiu aquele ano e todas as consequências que vieram posteriormente.
Além de formada em Jornalismo, pela UniSantos, sou graduada em Letras, pela Faculdade Don Domênico, e mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Este ano (2014) comecei o curso de Direito.  Sou jornalista, professora universitária, ganhadora do Prêmio Jornalístico de Anistia e Direitos Humanos Vladimir Herzog/97 e autora do livro Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós. Esse navio serviu de presídio político no Porto de Santos, de abril a novembro de 1964.
Meu pai, Iradil Santos Mello tinha 34 anos de idade quando o golpe foi deflagrado. Era portuário e membro da diretoria do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão, atualmente Sintraport. Como esse sindicato era muito ativo e composto por pessoas muito politizadas, meu pai foi acusado de ser subversivo. Acabou preso no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de Santos e depois no navio Raul Soares. Na época, minha mãe estava com 26 anos.  Minha irmã mais velha tinha  8 anos  e a mais nova era recém-nascida (4 meses de vida). Eu, como mencionei acima, tinha 6 anos.
Antes do golpe militar, nossa rotina era comum. Não víamos televisão, porque a TV ainda era objeto raro nas casas. O rádio era o nosso meio de comunicação. E nós costumávamos acompanhar o Jornal Falado Tupi, apresentado pelo jornalista Coripheu de Azevedo Marques. Meu pai lia o jornal Última Hora, de Samuel Wainer, e comentava as notícias na nossa presença. Então, éramos crianças que acompanhavam os fatos que ocorriam. Eu e minha irmã mais velha estudávamos na escola que funcionava no mesmo prédio do sindicato ao qual meu pai pertencia, era destinada apenas a filhos de associados. Tinha um nível de ensino excelente.  Como integrante da diretoria do sindicato, meu pai tomou posse em 23 de novembro de 1963. Ele  trabalhava na Companhia Docas de Santos (CDS) desde 1955.
 Santos era uma cidade agitada políticamente e culturalmente. Abrigava a vanguarda do sindicalismo, representado pelo Fórum Sindical de Debates. Era um organismo que unificava o pensamento e a ação dos trabalhadores. Quando o Fórum convocava uma greve, a cidade inteira parava. Por isso, se disseminou a ideia de que Santos era uma cidade de comunistas e que os sindicatos eram subvencionados por Moscou e guarnecidos de armas.Depois do golpe militar, essa tese não se sustentou. Tanto que não houve resistência nenhuma à deposição do presidente da República, João Goulart.  Como dirigente sindical, meu pai esteve presente à cerimônia de assinatura da Lei de Remessas de Lucros, pelo então presidente, no Palácio Rio Negro em Petrópolis em janeiro. Por essa lei, as empresas estrangeiras só poderiam remeter para suas matrizes 10% de seus lucros. O restante deveria ser aplicado no Brasil. A lei foi revogada assim que o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco tomou posse. Meu pai participou ainda do Comício da Central do Brasil, em 13 de março, no Rio de Janeiro. O chamado comício das reformas de base. Ele também coordenou uma paralisação por melhores condições de trabalho no desembarque do navio Santa Tereza. Na ocasião, essas participações eram legais. Depois do golpe militar, foram usadas contra ele nos processos que se seguiram às duas prisões.
 A primeira ocorreu na manhã de  1°. de abril. Ele foi levado do sindicato para o Palácio da Polícia, onde funcionava o Dops. Nesse local, ele passou cerca de uma semana, embora os arquivos registrem que a prisão foi apenas por um dia. Informação totalmente incorreta. O sindicato foi invadido por policiais do Exército, fuzileiros navais, Força Pública, polícia civil. Segundo ele me relatou, havia uns 200 militares. Todos portando metralhadoras. Na detenção do Palácio da Polícia, meu pai ficou sem comunicação com a família durante todo o tempo em que lá permaneceu.
Na página 90 do meu livro, ele relata que o delegado chamado Benedito Lélis ‘comandava uma espécie de pressão psicológica’ com os presos políticos, fazendo perguntas aparentemente sem nexo, ameaçando e provocando pânico. Quando libertava algum deles, não informava aos que continuavam presos e apenas dizia: ‘Aquele já foi’. Como não se sabia para onde, os que permaneciam detidos se apavoravam, acreditando que a frase tivesse sentido de ‘aquele já morreu’.
Foram dias de tensão e muita insegurança para minha mãe e nós, filhas, que, apesar de sermos crianças, entendíamos que nosso pai não era ladrão, nem assassino, mas um preso político. Minha mãe não tinha como esconder de nós o que estava acontecendo. Ela fez várias tentativas de ver meu pai, mas não conseguiu. Depois ele contou que, como os demais presos, dormia no chão em cima de jornais na cela apertada, de onde foram soltos presos correcionais, para serem detidos os considerados subversivos. Ela conta que chegou a enviar um cobertor por um policial marítimo, mas esse cobertor nunca foi entregue. Quando foi solto, meu pai perdeu a função que exercia no Sindicato, porque toda a diretoria tinha sido destituída. E os sindicatos ficaram sob a direção de interventores. Meu pai retornou ao trabalho na Companhia Docas de Santos, mas semanalmente era obrigado a prestar depoimento e sofria pressão para acusar um colega do sindicato de ser comunista. Como ele não se prestava a esse papel, recebia ameaças.
Em agosto, acabou sendo preso novamente. Umas pessoas amigas, que compreendiam os perigos daquele momento, nos levaram embora de casa e retiraram também alguns livros de meu pai que poderiam ser comprometedores. Ficamos escondidas na casa desses amigos com muito medo por algum tempo. A segunda prisão de meu pai foi no navio Raul Soares, que tinha sido trazido do Rio em abril de 1964.
O navio foi construído em 1900 por uma empresa alemã e batizado de Cap Verde. Tinha capacidade para 587 passageiros. Transportava imigrantes da Europa para a América do Sul. Em 1919, foi vendido para a Grã-Bretanha. Em 1922, teve o nome trocado para Madeira. Três anos depois, foi comprado pela Lloyd Brasileiro e passou a ser chamado de Raul Soares, em homenagem a um político mineiro. Trouxe para Santos muitos migrantes do Norte e Nordeste do País. Já estava inativo no Rio de Janeiro, quando foi rebocado até o Porto de Santos, onde chegou no dia 24. Na semana seguinte, começou a receber prisioneiros políticos, acusados de subversão, por se oporem ao Governo Militar que havia deposto o presidente João Goulart no dia 1° de abril (de fato).  Depois de desativado como prisão no dia 23 de outubro, o Raul Soares foi rebocado de volta para o Rio na manhã do dia 2 de novembro de 1964. Acabou virando sucata, mas em Santos ele será sempre lembrado como um símbolo da repressão.
Em maio de 1982, escrevi o poema Apenas Um Navio, que registra a impressões que aquele navio deixou em mim. Está nas páginas 10 e 11 de meu livro Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós. Ainda no meu livro, na página 9, eu cito um outro poema, Filho de Um Estupro, de minha autoria e também datado de maio de 1982, que foi escrito a partir da lembrança que eu tinha do dia em que minha mãe chegou no pátio de nossa escola, no sindicato, e nós estávamos cantando.
Era final de tarde. Quando eu a avistei, percebi que a ponta do nariz dela estava vermelho. E imediatamente eu tive a impressão de que ela tinha chorado e imaginei que alguma coisa tinha acontecido com meu pai. Realmente, ele tinha sido preso. Pela segunda vez. Tinha sido levado para o Raul Soares.É um poema que expressa bem as angústias daqueles tempos e os traumas que se formaram. No navio, inicialmente meu pai ficou preso por um mês, depois foi decretada sua prisão preventiva. Após o término da prisão preventiva, o capitão dos portos, Júlio de Sá Bierrenbach, dizia aos presos que eles permaneceriam no navio por vontade dele. Ou seja, a legalidade caía por terra. Isso ocorreu com meu pai, assim como com muitos outros. Minha mãe recebeu autorização para visitarmos meu pai no navio somente uma vez. Na página 11 de meu livro, eu descrevo como foi essa visita:
‘‘Uma lancha apanhou-nos no porto, em frente à alfândega. Havia muitas mulheres, além de minha mãe e tia Neuza. E ainda outras crianças, além de mim (6 anos), minhas irmãs, Laura (8 anos) e Lúcia (nove ou dez meses), e nossa prima Sônia, de 3 anos. Desembarcamos perto da Ilha Barnabé, em um flutuante que balançava muito, amarrado no navio preto, adernado, o Raul Soares. Eu que sempre morri de medo do balanço de barca. Os policiais marítimos, com uniformes de mescla azul, estendiam as mãos para nos ajudar. Minha mãe com Lúcia, bebê, no colo, e aquela escada estreita, mole, tão insegura! Que medo de cair! Do flutuante, os policiais observavam nossa subida. E todas as mulheres e meninas de saia ou vestido. Naquele tempo, não era permitida a entrada de mulheres de calça comprida nos estabelecimentos públicos.
E eles lá embaixo olhando... Ódio é o que eu sentia! Por dentro o navio parecia maior.
Ficamos num salão repleto de mesas longas e... policiais marítimos. Não sei da sensação de rever meu pai, mas não me esqueço de que reclamei de dor de cabeça. Um policial trouxe um comprimido cor-de-rosa. Acho que Melhoral infantil. Recusei. Meu pai insistiu. Tomei, revoltada por ele ainda agradecer e sorrir para o ‘polícia’, como eu dizia. Pouco depois pedi para ir ao banheiro Tia Neuza me acompanhou. O polícia correu na frente. A privada estava suja e sem descarga. Ele forrou o fundo com papel higiênico. Ela não me deixou sentar.
Desde então, fiquei com ódio de todo e qualquer policial marítimo. Não podia ver farda de mescla azul. Ofegava, emburrada. Não houve outras visitas, porque eram proibidas. A Capitania dos Portos só permitiu aquela em uma tarde de sábado. Na volta, conforme a lancha foi se afastando em direção ao cais, as mãos que acenavam nas vigias foram ficando menores, menores... até que sumiram. Só restou a imagem incômoda daquele navio negro, que permaneceu tatuado em nós, como os números nos braços dos sobreviventes dos campos nazistas de concentração´´.
Não existem dados precisos sobre quantos homens foram presos no Raul Soares. Foram centenas. Alguns passaram dias, outros, semanas, outros, meses. Havia um certo rodízio. Nem todos se encontraram. Alguns ficaram em celas improvisadas. Muitos ficaram nos porões. As condições eram péssimas. A comida era da pior qualidade, segundo relato de ex-presos. Havia muita tortura psicológica e ameaça de se levar o navio para o alto-mar. Alguns eram postos em cubículos perto da caldeira, expostos à alta temperatura, e depois, eram transferidos para cubículos ao lado do frigorífico, local muito gelado.
Houve quem enlouquecesse, como foi o caso de Zeca da Marinha, com quem meu pai teve contato e me fez um relato doloroso, que também está em meu livro. Não havia assistência médica a bordo. O médico Thomas Maack, que era professor da USP e também prisioneiro, fazia atendimentos de emergência. Meu pai também me fez relatos sobre ele. Em 2003, 39 anos depois, eu o localizei em Nova Iorque e, após ler meu livro e de saber sobre meu pai, ele me deu uma longa entrevista, que resultou numa reportagem de página que publiquei no jornal A Tribuna. Depois, em fevereiro de 2004, ele veio a Santos somente para me conhecer.
Quando saiu do navio, meu pai foi demitido da Companhia Docas de Santos em 25 de setembro, sob a alegação de que tinha paralisado as atividades de descarga do navio Santa Tereza, em fevereiro de 1964. Os argumentos da empresa foram contestados na Justiça do Trabalho, mas a sentença favorável a ele só foi expedida em 1973. Na verdade, a demissão ocorreu porque ele era considerado comunista, subversivo. Ele também respondeu a processo na Auditoria de Guerra por ter parado esse navio. Além dessa questão trabalhista provocada pelas implicações políticas, ele foi denunciado em 21 de outubro de 1964, com base no Código Penal, sob acusação de subversão da ordem social e política, provocar paralisação de trabalho (greve), entre outras atividades.A sentença só foi proferida em 26 de março de 1971 (cf. páginas 103 e 104 do livro Raul Soares...) pelo Conselho Permanente da Justiça Militar.
‘Todos os réus foram condenados a um ano e dois meses de detenção, pelo crime previsto no artigo 9° da Lei 1.802/53, incluído no Decreto-Lei 314/67, que define os crimes contra a segurança nacional e a ordem social e política. A pena, porém, foi extinta, por prescrição’. Da acusação de subversão da ordem social por meios violentos, meu pai foi absolvido, assim como da de provocar greve.  
No meu livro, eu tento relatar um pouco das dores que nós sentimos naquele tempo e em anos posteriores, em que nosso pai ficou respondendo a processos e não conseguia arranjar emprego.
Ele sempre era demitido, quando descobriam que tinha sido preso político. Mesmo muitos que se diziam amigos nos viam como pessoas que mereciam o que estávamos passando, como uma forma de castigo por nosso pai ‘‘falar demais’’, ‘‘ser metido em política’’, ‘‘ser um subversivo, um comunista’’.
Em 1964, aos 34 anos, nosso pai estava no auge de sua vida produtiva e perdeu o emprego de nove anos. Nós ficamos sem direito a assistência médica, por exemplo. Com 26 anos de idade, nossa mãe teve que sustentar a nossa família e a nossa casa sozinha durante anos, além de garantir os nossos estudos e nossa assistência médica. Meu pai só conseguiu emprego em 1973 na Prefeitura de Guarujá.  Mas acabou sendo demitido em 1980, também por questões políticas.Em 1979, foi assinada a Lei de Anistia. Ele, que fazia parte do Comitê Nacional de Anistia, foi anistiado no início de 1980. Mas não foi aceito de volta na Companhia Docas de Santos. Então, foi aposentado compulsoriamente, como previa a lei. Ele recorreu à Justiça para poder garantir o direito de reassumir sua vaga na empresa. A readmissão só ocorreu em 1987. Ele permaneceu nas Docas até 1991, quando saiu por livre e espontânea vontade.
Depois que meu pai morreu, em 21 de dezembro de 1999, minha mãe requereu documentos do Dops sobre ele, e acabamos confirmando que ele era constantemente vigiado, conforme costumava suspeitar, mas nós mesmas da família chegávamos a achar que era somente uma mania de perseguição. Em um dos documentos, elaborado pelo Ministério da Marinha, com o carimbo de CONFIDENCIAL, são registrados dados sobre uma reunião realizada em 1969, com o nome de todos os presentes, entre eles, o de meu pai. Ele também fazia parte da lista de pessoas contra-indicadas para o contato com o Presidente da República. Nesse documento, trazia todos os dados dele e o classificava como comunista atuante.
Neste ano de 2014, 50 anos depois do golpe militar, que permitiu a instalação de uma ditadura de 21 anos, que nos privou de tantos direitos, acho que precisamos conhecer nosso passado e refletir sobre ele para construirmos um futuro mais sólido, menos vulnerável. Precisamos conhecer nossa História para saber que rumos queremos para o nosso país. E para não permitir que decidam por nós.
Depois de tudo o que passamos, o que eu mais prezo é a liberdade, a possibilidade de pensar livremente e me expressar. Eu não consigo conceber a vida sem liberdade de expressão. Durante os anos de ditadura, eu e minhas irmãs tivemos que tomar muito cuidado com o que falávamos na escola e posteriormente na faculdade.
Foram anos a fio, chegando em casa e comentando o que os professores nos explicavam e ouvindo nosso pai dar uma outra versão da história. E nossa mãe sempre alertando: ‘‘Cuidado com o que vocês falam! Cuidado com o que vocês falam!’’ Uma frase do escritor argentino Ernesto Sábato, que usei como epígrafe em meu livro, representa bem o que penso sobre ditaduras: ‘‘Não há ditaduras más e outras benéficas, todas são igualmente abomináveis’’.


Grupo: Gabriel Pestana, Helena Bernardes, Isabela Messias, Jéssika Fortes, Marcella Tavares e Victoria Naef.

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